segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Por acaso

         Marilyn chorava. Coitada. E ainda a chamavam de vagabunda. Como se ela tivesse escolha. Como se ela gostasse daquilo. E seu rosto ardia, vermelho. Suas coxas, sua bunda, suas costas estavam todas riscadas de unha. O orgulho, a dignidade, isso já tinha sido arrancado do seu corpo, e agora o que lhe doía era a inocência. E veja só, nessa altura do campeonato, Marilyn dizia para si, vem você querer sonhar com inocência? Coitada.
         Aprendera um jeito de chorar sem borrar a maquiagem, para não ter que voltar para casa, ou entrar em algum banheiro de bar e ter a bunda beliscada enquanto atravessava as mesas. Afinal, naqueles trajes, só a deixavam entrar nos lugares onde os homens beliscavam as mulheres. Onde homens xingavam mulheres com o que chamavam elogios, e ela lhes sorria, humilhada.
         As pessoas da cidade são todas diferentes, mas a grande maioria compartilha uma característica em comum: odeiam as pessoas da cidade. Por serem taradas, por serem puritanas, por serem burras, egocêntricas, gordas, magricelas, estranhas. Odeiam umas as outras por serem o que são, sejam o que forem, mesmo que sejam iguais. Até que cansam, e são indiferentes umas as outras, enquanto odeiam ou admiram somente a si.
         Marilyn era das que odiava. As pessoas e a si, ao mesmo tempo. As ruas a haviam deixado amarga, amarga demais para olhar nos olhos de Gerald e perceber como ele a olhava. Mas Gerald era do tipo mais raro, aquele que não odeia nem é indiferente a ninguem. Pobre Gerald, era do tipo mais desgraçado.
         Se não fossem as ruas, se fosse alguns anos mais cedo, Marilyn até sorriria depois de ouvir Gerald lhe gaguejar um bom dia, se atrapalhar com suas cartas ou tropeçar, quando ela aparecia. Poucas coisas podem ser mais cruéis do que a hora errada, e quase nada era mais destrutivo do que a amargura de Marilyn. Mas Gerald era um rapaz esforçado. E, o melhor, era um rapaz que bebia.
         Um dia, o acaso, sempre confundido com destino, decidiu fazer com que Richard, o parceiro de bebedeiras de Gerald, o expulsasse do seu apartamento bem na hora em que Marilyn chegava ao segundo andar. Richard, por acaso, era dos que odiava a todos, menos a si, nessa época. O silêncio quebrado bruscamente tem um efeito muito interessante, às vezes, de cortar reflexões, o que geralmente é uma boa coisa. Gerald cambaleou com o empurrão de Richard, se apoiou na parede do outro lado do hall, rindo da língua enrolada do mal perdedor de discussões que seu amigo era, e continuou rindo quando este chegou perto de derrubar o prédio com a porta. Riu um pouco mais, até que percebeu Marilyn no corredor, parada, esperando uma chance de passar pela confusão. Olhou-a, e lhe sorriu, bêbado e sincero, o melhor sorriso que tinha guardado, e ela, por falta de escolha, o olhou nos olhos, assustada.
         - Marilyn, oi! Quer beber um pouco? Ainda tem uma garrafa de vinho, no meu apartamento, o que acha?
         Ela não merecia aquilo. Tinha sido uma noite cansativa, e na sua casa, ainda restava um bêbado querendo arranhá-la – não, obrigada. Estou cansada, vou dormir.
         Baixou os olhos e seguiu andando, para seu apartamento.
         - Ah, tudo bem. É, eu também tô cansado, mas eu queria alguém para conversar, ainda. Tô cansado , mas não to afim de dormir, sabe como é?
         - Hum. – não sabia que idiotas como aquele paravam a gagueira quando estavam bêbados.
         - E você parece alguém legal para conversar, sabe. Às vezes é tudo o que eu quero, alguém para conversar.1
         Passara por ele e alcançara a porta do seu apartamento. Pegava a chave dentro da bolsa pequena.
         - Me desculpe estar sendo tão chato com você, eu só queria conseguir ser sincero, Marilyn. – só agora que ele repetira, ela se dera conta: ele sabia o seu nome, e ela não falava com ninguém daquele prédio. Ela nem sabia o nome dele, pra falar a verdade, só o conhecia de vista. Parou de rodar a chave e o olhou.
         - Você não é uma menininha, eu tenho certeza que você percebe como eu olho pra você, não é? Eu sei, você tá cansada, eu sei. Mas você sabe, não sabe?
         - Não. Não sei. – tinha algo estranho com ela, agora. Ela estava nervosa, e curiosa com o que não sabia, apesar de, a esta altura, já suspeitar, é claro. Mas na mente de pessoas como ela, esse tipo de coisa era muito rapidamente desmentida.
         Gerald olhou o chão, levantou a cabeça, de olhos fechados. Pôs-se ereto, respirou fundo. O sorriso lhe sumiu do rosto, e ele pareceu sóbrio, exceto pelos olhos vermelhos e a face suada, cabelos despenteados. Fitou o chão mais uma vez, como que criando coragem para falar:
         - Eu não quero lhe importunar. Muito menos que você seja... como é a palavra... indiferente assim. – então pôde olhá-la nos olhos. O que iria falar lhe tirava o medo que tinha dela. – Eu sou tão sozinho quanto você. E acho que é isso que nos une. – ela pareceu ter medo dele. Ele olhou o chão mais uma vez, e uma mão esfregou a outra com força. Ela abaixou o olhar, ele levantou o seu, tímido, com o rosto ainda para baixo. Ela olhou a porta do seu apartamento, como se quisesse fugir, ele olhou a do apartamento do outro lado do corredor, sem enxergar nada. Ela girou o trinco e abriu a porta, ele procurou qualquer coisa nos bolsos, enquanto procurava algo para falar. Ela tomou coragem.
         - Eu preciso entrar.
         - Tudo bem.
         -...
         -... Boa noite.
         - Pra você também. – e fechou a porta. Se pudesse pensar direito, tentaria entender por que aquela conversa tão estranha a havia deixado tão... estranha. Trêmula. Inquieta. Entrou no chuveiro, tomou um banho meio distraído, vestiu o pijama, desligou a luz e caiu na cama, de olhos bem abertos. Tentou julgar um pouco mais na frase do vizinho bêbado, coçou algum inseto, o expulsou da cama, virou-se de lado, lembrou do velho magro, com unhas sujas, muito sujas, de mais cedo, pensou que estava sozinha agora. Lembrou do dinheiro que Margareth lhe devia, que iria completar o aluguel, se ela decidisse lhe pagar, se encolheu para o vento frio da janela e pensou em ter alguém em quem se abraçar. Lembrou das unhas fedorentas do velho magro. Percebeu que o velho de unhas sujas não durou quase nada na sua cabeça,Parou um pouco, e de repente, Marilyn sorria.

2 comentários:

Flávia Costa disse...

Poxa... esse texto ficou bem real mesmo, porque se fosse filme, ela teria dado bola pro coitado do Gerald.

Mozart disse...

Adoro os diálogos e os pensamentos, mas adoraria mais se a história continuasse até um desfecho dramático, mas aí é com você e eu não tenho nada com isso! x)