segunda-feira, 28 de março de 2011

Meio e fim

        A todo momento, em toda esquina, beco, viela, casa, apartamento, em todo e qualquer lugar existem histórias acontecendo. Histórias felizes, tristes, trágicas, engraçadas, interessantes ou sem importância, existem bilhões delas acontecendo agora. A grande maioria delas nunca será contada, por que não importa a ninguém. Outra parte, bem menor, por que é segredo, e alguns poucos segredos permanecem secretos pra sempre. E outra parte, por que é esquecida.
        John, em algum lugar do oriente, numa guerra qualquer, levou um tiro no braço esquerdo, que o derrubou, bateu com a nuca numa calçada e perdeu toda sua memória. No regimento, todos os soldados que o conheciam tinham morrido. Seus superiores, numa lapso de lembrança de humanidade, tiveram pena dele, e informaram a seus próprios superiores, que ele havia se tornado inútil, e o enviaram de volta pra cidade, que de acordo com os registros, era sua casa.
        A família de John havia morrido. Soube pelos mesmos registros que seu pai morrera a muitos anos, quando ainda era criança, e sua mãe a apenas 2 meses. Deveria lembrar de ter recebido a noticia, ou talvez nem tivesse recebido. Chegou à casa que disseram que havia morado, e ela estava vazia.
        Procurou mais parentes, mas pelo jeito, não havia ninguém. Passara tempo demais lutando uma guerra que ele até procurou entender, mas logo esqueceu, por não importar. Não lembrava de amigos, não achou telefone de ninguém com quem pudesse tomar uma cerveja e lhe contar sobre os anos perdidos. Acabou fazendo isso sozinho, muitas vezes, sonhando um dia alguém o reconhecer na rua, parar-lo e dizer “John? Meu deus, é você mesmo!”, mas o acaso nunca lhe sorriu.
        John gastou o dinheiro que o exército havia lhe dado com bebida, e comida, e com uma vida solitária. Gastava os dias vagando pelas ruas, pelos shoppings, ia a festas, bares, e uma vez foi até num encontro de uma turma antiga que ele calculou que poderia ter feito parte, mas ninguém nunca o reconheceu.
        Passou por várias fases. A do desespero foi a primeira. Chorava dia e noite, sozinho naquela casa que deveria ser familiar, apertando o cérebro atrás de uma memóriazinha que fosse, de um fragmento qualquer, olhando fotos mofadas suas com aquelas pessoas que não lembrava, naquela casa-fantasma. Nada.
        Veio a fase da tranqüilidade. Começou a achar bom aquilo, a rir das pessoas das fotos, achar elas estranhas, ridículas, e deu graças a ter esquecidos todas elas. Essa durou muito pouco, uma semana ou duas, e então veio a tristeza, e voltou a chorar. Não conseguiu se enganar por muito tempo, no fundo sabia que queria muito lembrar de qualquer uma delas, mesmo que lhe tivessem feito mal, espancado desde criança, ou de ter sido um adolescente revoltado. Queria lembrar que cicatrizes eram aquelas que vez por outra encontrava no seu corpo. Nada.
        Começou a ter medo de tudo e de todos, medo da cidade. Medo das pessoas. Começou a pensar que tinham raiva dele e que o reconheciam, mas não falavam por isso, que todos haviam festejado a sua amnésia, se livrado daquele incomodo, e se trancou em casa por muitos meses. Tinha dinheiro pra ficar por ali muito tempo, sozinho, mas não calculou que um dia ele acabaria. Quando calculou, teve medo de ter que sair atrás de trabalho, pois ninguém ia querer dar uma chance para aquele desgraçado, que todos odiavam, e continuou em casa.
        Veio então a resignação, e o ódio pelos que lhe ignoravam, que era todos. Quando ela veio, o dinheiro havia ido todo embora. Começou a passar fome, e tentou alguns empregos, mas não se deu bem em nenhum. Aceitava que ninguém o queria por perto, e que não esperavam nada dele, e não lhes ofereceu nada além de um robô catatônico, um zumbi. Mas elas queriam mais do que isso.
        John não falava com ninguém, não tinha assuntos. Não se lembrava do que gostava, das bandas preferidas, dos filmes que lhe marcaram, das namoradas com quem aprendera como não se deve tratar uma mulher. John não se lembrava de sua própria personalidade.
        Teve de sair de casa por não poder pagar o aluguel de uma casa onde deveria viver uma família, e mudou-se para um apartamento. Mas sem emprego, acabou nas ruas, sempre sozinho. Foi então que veio a última fase: a amargura.
        Era um mendigo qualquer, a barba cheia de insetos e o cabelo fedido escondido debaixo de uma touca que achara no lixo, junto com a comida. Sentiu frio, sentiu sede, sentiu fome e principalmente, sentiu que não sentia mais nem ódio, nem tristeza, nem nada. aceitara aquela única vida que lembrava de uma forma que ela não parecia nem ruim nem boa. Havia se tornado uma planta.
        Como toda história, a de John um dia acabou tendo um fim. Ou um segundo fim. Numa noite providencialmente chuvosa, num beco qualquer, embaixo de uma caixa de papelão, viu a luz dos postes enfraquecendo devagarinho. Sentiu a fome passar, o frio, as dores no corpo. Sentiu muito, muito sono. Antes de fechar os olhos, pensou “bem, parece que aqui se encera a história de...” e percebeu que fazia muito tempo que não falava seu nome para ninguém. Muitos anos. Uma última vez imaginou se alguém ainda lembrava seu nome, e imaginou esse alguém chegando, o reconhecendo e dizendo “Meu deus, eu conheço você! Você não é o ...” e o chamando por aquele nome que agora, nem ele mesmo recordava.


quinta-feira, 24 de março de 2011

Noite Longa (parte 1)

        A cidade tem seus donos, como toda cidade tem. Todo mundo sabia quem eram, só não dava pra ter certeza se havia um dono absoluto. O senador Michael Kane, dono da TV Cidade e do jornal A Cidade, talvez. Ou o italiano aleijado, Giuseppe Giuliani, dono de metade dos imóveis e hotéis. E sabe-se lá do que mais. E mais meia dúzia de donos de alguma coisa, poderia ser algum deles. Mas no bairro de Riverside e próximos, todos sabiam: Billy Jones.
        Só Billy parecia não saber. Estava sempre muito calmo, muito quieto, olhando pra todos os lados por debaixo da franja, com os olhos apertados. Billy era um cara humilde, morava no mesmo apartamento de sempre, controlava a droga que entrava e saía do bairro deitado no seu sofá, quando não estava usando, por que nessas horas o sofá parecia ser feito de pregos. Mandava nas drogas, nas putas, e diziam, até em qual cavalo deveria correr mais no hipódromo. Diziam. Diziam até que aquele gancho de Phill Loreen só atingiu o queixo de Big Bob Benson no ringue por que ele não gostava de negros. O que não era verdade, ele mesmo desmentiu, uma vez: “Isso de racismo é coisa dos italianos, não é comigo” foi o que ele disse.
        Billy não era de ostentar. Não trabalhava pelo dinheiro, só queria se virar. E não deixar que passassem por cima dele, isso não. Passou tanto por cima dos quem tentou derrubá-lo que acabou por cima de todos. Era um cara frio, de caminhado forte e decidido, de olhar sempre desconfiado. E era jovem ainda, não tinha mais de 32, 33 anos. Os que trabalhavam pra ele diziam que era um gênio. Os que não, que era a porra dum louco psicopata. “eu sou só um cara normal, tentando se virar”, ele dizia. Um grande cara, o Billy. Só não tolerava desrespeito. Todos sabiam disso, e Eugene Green, ou Lil Bullet, estava amarrado a uma cadeira, num certo lugar sem vizinhos, prestes a ter muita certeza disso.
        Billy entrou porta adentro, com os olhos travados nos do negro, como se já viesse o encarando desde antes de entrar no lugar, suado e o mais alterado que podiam encontrá-lo, o que não era diferente de calmo e quieto. Bullet já tinha apanhado bastante, para o prazer de Baldie, o braço direito de Billy. O braço direito sádico de Billy. Mantinha o olhar firme, duro. Bullet não era “dobrável”. Billy andou até ele, parou a sua frente, abaixou-se num joelho para ficar cara a cara. Apertou os olhos.
        - Que merda você pensa que tá fazendo, Eugene? – disse ele, muito calmo. Quase um sussurro. – que merda você pensa... a gente não tinha um acordo? Eu ficaria em Riverside, Rose’s Garden e Saint Patrick e você com a porra do bairro dos negros inteiro, só pra você, pra você encher o cu dos seus irmãos de pedra e maconha a vontade e o que você faz? Caralho, o que você faz? Manda uma dúzia de imbecis assaltar minhas bocas, rouba meu pó, e mata dois garotos, é isso que você faz – Bullet apenas encarava, respirando forte. Seu orgulho gritava, mas ele não abria a boca. Billy se virou, incrédulo com a situação, metendo a mão no cabelo com uma mão e tirando a pistola da cintura com a outra, colocando-a sobre uma mesa.
        - Cacete, Eugene, quê que eu faço contigo? Quê que eu faço, te mando num saco preto pra tua mãe, é isso? Foi nisso que tu se confiou, não foi? Que eu não ia te matar por causa da tua mãe? Só pode ser, só pode... – arrastou uma cadeira e sentou meio esparramado, de frente para o negro calado. O olhou por um segundo e soltou um suspiro, balançando a cabeça, dando um tapa na própria coxa. – que decepção, cara, que decepção... eu realmente achei que você fosse um cara bom, mas olha o que você me obriga a fazer. E ainda fica aí calado, cheio de razão! Acha mesmo que eu vou deixar de te matar por causa da tua mãe, Eugene? – Falou pegando a arma da mesa. Do lado da porta, parado como um soldado, o que ele era, Baldie sorriu. – Acha mesmo que não posso? Que eu não vou reunir todo mundo e pegar teu bairro todo de volta? Boca por boca? Acabar com todas e deixar todo mendigo de lá sem UMA pedra pra fumar, ninguém vai vender pra ninguém de lá, nos outros bairros, pra ver cada preto, branco, japa, chicano, o caralho de Saint Hellen morrer de abstinência, acha que não? Pois é isso que eu vou fazer! – Bullet foi ficando cada vez mais ofegante, enquanto Billy não saia da sua meditação, jogado na cadeira como se tivesse falando qualquer coisa sem importância. – Eu nem preciso te matar, não. Eles vão fazer isso por mim. Eu só vou dar o motivo. Ah, - e foi se levantando – e dar uma ajuda pra eles. – encostou o cano da arma num joelho de Bullet, q abriu a boca a primeira vez. Disparou um tiro em cara joelho, à queima roupa e se virou indo para a porta, falando com Baldie. – Você ouviu, né? Vai chamando todo mundo, vamos derrubar Saint Hellen ainda essa noite. – ele foi falando, meio gritando, para a voz ficar acima dos gritos - E liga pro Damien pra ele avisar pra todo mundo que só pode vender pra quem é do bairro, nada de vender pra gente de fora por uns tempos. EI, HARRIS! – gritou, já na rua, para outro “companheiro” seu, como ele chamava-os – pega esse filho da puta chorão aí dentro e leva pra casa da mãe.
        Entrou no seu carro, sozinho. Olhou-se no retrovisor um pouco, enquanto pegava uma aspirina no porta-luvas e tomava a seco. Seus olhos estavam vermelhos, inchados. Pegou uma caixinha prateada no bolso da jaqueta, abriu, cheirou o resto de cocaína e guardou-a de volta. Fazia 2 noites que dormia muito mal, e lá se ia mais uma noite fora da cama. Negro filho da puta, pensou. Vida filha da puta.


segunda-feira, 14 de março de 2011

Tédio

        E o banco estava lá, sozinho. Naquela hora da madrugada era sempre assim: nem o vento parava pra lhe fazer companhia. No máximo uma chuvinha leve e rápida aparecia para movimentar um pouco as coisas, e até já tinha dado as caras, mas já fora embora. Agora era só ele. Ele, as folhas secas do chão e suas tatuagens, entalhadas por chaves. Aquela do coração com “S e E” dentro era a preferida. Dava a impressão que fora um banco importante para aquelas pessoas, um dia. Nem todo banco de praça tem essa sorte.
        Mas de repente uma garrafa de vodka parou por ali. Perto da beirada do assento, quase caindo. Já estava perto do fim, coitada, com o rótulo meio rasgado. E um cigarro foi aceso, dentro de uma concha feita pelas mãos de um rapaz que parecia mais sozinho que o banco, mesmo acompanhado pela garrafa. Ele não sentou, ficou ali chutando folhas secas, fumando o cigarro que era o mais desperto da praça, soltando aquela fumaça que bem que tentava, mas o máximo que conseguia era lembrar uma neblina. Diferente do resto, o rapaz não estava ali por estar, ele tinha algo a fazer. Pegou a garrafa pelo pescoço, tomou um gole e fez uma careta. Outro trago longo do cigarro, como tira-gosto, e já estava na hora. Ele não estava pronto, mas estava na hora. Enfiou a mão no bolso da calça e tirou uma faca. Ela reluziu, cruel, sob a luz do poste que observava a cena que estava bem tediosa até agora.
        O garoto retirou o relógio de pulso e o guardou no bolso de onde tirara a faca, estirou o braço a sua frente e travou. Uma gota salgada pulou da ponta do seu nariz nessa hora, num longo mergulho até o chão, no qual infelizmente ninguém prestou atenção. A faca abaixou um pouco, junto com o pulso, e mais gotas pularam seguindo a primeira. O silêncio foi violentamente quebrado por um soluço úmido que escapou apertado pela boca do garoto, e o ventou passou para dar uma espiada no que estava acontecendo. A boca então, junto com os olhos e resto do rosto se voltou para cima, para respirar um pouco, e o soluço parou.
        O tempo estava passando, e a faca resolveu se apressar. Se ergueu enquanto o garoto ainda olhava pro céu, faminta e concentrada. Esperou os olhos se fecharem com força e como num afago, abriu o pulso de cima abaixo. Com pressa, para não perder o ritmo, pulou para a outra mão e avançou no outro pulso e por fim relaxou. Trocou de lugar com a garrafa, no banco, e o cigarro já quase morto passou sua chama para um novo, num beijo. Os olhos, que já tinham se aberto, nesse momento se fecharam calmamente, aliviados, e depois de um outro gole e outra careta, o garoto enfim sentou-se.
        O banco, sortudo, era mais uma vez um banco especial, com suas novas tatuagens em vermelho escuro brilhando sob o olhar atento do poste e dos insetos que o rodeavam, apesar de parecer que não prestavam atenção em nada. Passado algum tempo, o cigarro se foi, e o vento passou para ver o que estava acontecendo de novo. O sangue escorria e caia, brincando de esconder-se entre os paralelepípedos do chão da praça. E a garrafa ficou lá, quase no fim, parada, fazendo companhia ao banco sem nunca secar.