segunda-feira, 28 de março de 2011

Meio e fim

        A todo momento, em toda esquina, beco, viela, casa, apartamento, em todo e qualquer lugar existem histórias acontecendo. Histórias felizes, tristes, trágicas, engraçadas, interessantes ou sem importância, existem bilhões delas acontecendo agora. A grande maioria delas nunca será contada, por que não importa a ninguém. Outra parte, bem menor, por que é segredo, e alguns poucos segredos permanecem secretos pra sempre. E outra parte, por que é esquecida.
        John, em algum lugar do oriente, numa guerra qualquer, levou um tiro no braço esquerdo, que o derrubou, bateu com a nuca numa calçada e perdeu toda sua memória. No regimento, todos os soldados que o conheciam tinham morrido. Seus superiores, numa lapso de lembrança de humanidade, tiveram pena dele, e informaram a seus próprios superiores, que ele havia se tornado inútil, e o enviaram de volta pra cidade, que de acordo com os registros, era sua casa.
        A família de John havia morrido. Soube pelos mesmos registros que seu pai morrera a muitos anos, quando ainda era criança, e sua mãe a apenas 2 meses. Deveria lembrar de ter recebido a noticia, ou talvez nem tivesse recebido. Chegou à casa que disseram que havia morado, e ela estava vazia.
        Procurou mais parentes, mas pelo jeito, não havia ninguém. Passara tempo demais lutando uma guerra que ele até procurou entender, mas logo esqueceu, por não importar. Não lembrava de amigos, não achou telefone de ninguém com quem pudesse tomar uma cerveja e lhe contar sobre os anos perdidos. Acabou fazendo isso sozinho, muitas vezes, sonhando um dia alguém o reconhecer na rua, parar-lo e dizer “John? Meu deus, é você mesmo!”, mas o acaso nunca lhe sorriu.
        John gastou o dinheiro que o exército havia lhe dado com bebida, e comida, e com uma vida solitária. Gastava os dias vagando pelas ruas, pelos shoppings, ia a festas, bares, e uma vez foi até num encontro de uma turma antiga que ele calculou que poderia ter feito parte, mas ninguém nunca o reconheceu.
        Passou por várias fases. A do desespero foi a primeira. Chorava dia e noite, sozinho naquela casa que deveria ser familiar, apertando o cérebro atrás de uma memóriazinha que fosse, de um fragmento qualquer, olhando fotos mofadas suas com aquelas pessoas que não lembrava, naquela casa-fantasma. Nada.
        Veio a fase da tranqüilidade. Começou a achar bom aquilo, a rir das pessoas das fotos, achar elas estranhas, ridículas, e deu graças a ter esquecidos todas elas. Essa durou muito pouco, uma semana ou duas, e então veio a tristeza, e voltou a chorar. Não conseguiu se enganar por muito tempo, no fundo sabia que queria muito lembrar de qualquer uma delas, mesmo que lhe tivessem feito mal, espancado desde criança, ou de ter sido um adolescente revoltado. Queria lembrar que cicatrizes eram aquelas que vez por outra encontrava no seu corpo. Nada.
        Começou a ter medo de tudo e de todos, medo da cidade. Medo das pessoas. Começou a pensar que tinham raiva dele e que o reconheciam, mas não falavam por isso, que todos haviam festejado a sua amnésia, se livrado daquele incomodo, e se trancou em casa por muitos meses. Tinha dinheiro pra ficar por ali muito tempo, sozinho, mas não calculou que um dia ele acabaria. Quando calculou, teve medo de ter que sair atrás de trabalho, pois ninguém ia querer dar uma chance para aquele desgraçado, que todos odiavam, e continuou em casa.
        Veio então a resignação, e o ódio pelos que lhe ignoravam, que era todos. Quando ela veio, o dinheiro havia ido todo embora. Começou a passar fome, e tentou alguns empregos, mas não se deu bem em nenhum. Aceitava que ninguém o queria por perto, e que não esperavam nada dele, e não lhes ofereceu nada além de um robô catatônico, um zumbi. Mas elas queriam mais do que isso.
        John não falava com ninguém, não tinha assuntos. Não se lembrava do que gostava, das bandas preferidas, dos filmes que lhe marcaram, das namoradas com quem aprendera como não se deve tratar uma mulher. John não se lembrava de sua própria personalidade.
        Teve de sair de casa por não poder pagar o aluguel de uma casa onde deveria viver uma família, e mudou-se para um apartamento. Mas sem emprego, acabou nas ruas, sempre sozinho. Foi então que veio a última fase: a amargura.
        Era um mendigo qualquer, a barba cheia de insetos e o cabelo fedido escondido debaixo de uma touca que achara no lixo, junto com a comida. Sentiu frio, sentiu sede, sentiu fome e principalmente, sentiu que não sentia mais nem ódio, nem tristeza, nem nada. aceitara aquela única vida que lembrava de uma forma que ela não parecia nem ruim nem boa. Havia se tornado uma planta.
        Como toda história, a de John um dia acabou tendo um fim. Ou um segundo fim. Numa noite providencialmente chuvosa, num beco qualquer, embaixo de uma caixa de papelão, viu a luz dos postes enfraquecendo devagarinho. Sentiu a fome passar, o frio, as dores no corpo. Sentiu muito, muito sono. Antes de fechar os olhos, pensou “bem, parece que aqui se encera a história de...” e percebeu que fazia muito tempo que não falava seu nome para ninguém. Muitos anos. Uma última vez imaginou se alguém ainda lembrava seu nome, e imaginou esse alguém chegando, o reconhecendo e dizendo “Meu deus, eu conheço você! Você não é o ...” e o chamando por aquele nome que agora, nem ele mesmo recordava.


quinta-feira, 24 de março de 2011

Noite Longa (parte 1)

        A cidade tem seus donos, como toda cidade tem. Todo mundo sabia quem eram, só não dava pra ter certeza se havia um dono absoluto. O senador Michael Kane, dono da TV Cidade e do jornal A Cidade, talvez. Ou o italiano aleijado, Giuseppe Giuliani, dono de metade dos imóveis e hotéis. E sabe-se lá do que mais. E mais meia dúzia de donos de alguma coisa, poderia ser algum deles. Mas no bairro de Riverside e próximos, todos sabiam: Billy Jones.
        Só Billy parecia não saber. Estava sempre muito calmo, muito quieto, olhando pra todos os lados por debaixo da franja, com os olhos apertados. Billy era um cara humilde, morava no mesmo apartamento de sempre, controlava a droga que entrava e saía do bairro deitado no seu sofá, quando não estava usando, por que nessas horas o sofá parecia ser feito de pregos. Mandava nas drogas, nas putas, e diziam, até em qual cavalo deveria correr mais no hipódromo. Diziam. Diziam até que aquele gancho de Phill Loreen só atingiu o queixo de Big Bob Benson no ringue por que ele não gostava de negros. O que não era verdade, ele mesmo desmentiu, uma vez: “Isso de racismo é coisa dos italianos, não é comigo” foi o que ele disse.
        Billy não era de ostentar. Não trabalhava pelo dinheiro, só queria se virar. E não deixar que passassem por cima dele, isso não. Passou tanto por cima dos quem tentou derrubá-lo que acabou por cima de todos. Era um cara frio, de caminhado forte e decidido, de olhar sempre desconfiado. E era jovem ainda, não tinha mais de 32, 33 anos. Os que trabalhavam pra ele diziam que era um gênio. Os que não, que era a porra dum louco psicopata. “eu sou só um cara normal, tentando se virar”, ele dizia. Um grande cara, o Billy. Só não tolerava desrespeito. Todos sabiam disso, e Eugene Green, ou Lil Bullet, estava amarrado a uma cadeira, num certo lugar sem vizinhos, prestes a ter muita certeza disso.
        Billy entrou porta adentro, com os olhos travados nos do negro, como se já viesse o encarando desde antes de entrar no lugar, suado e o mais alterado que podiam encontrá-lo, o que não era diferente de calmo e quieto. Bullet já tinha apanhado bastante, para o prazer de Baldie, o braço direito de Billy. O braço direito sádico de Billy. Mantinha o olhar firme, duro. Bullet não era “dobrável”. Billy andou até ele, parou a sua frente, abaixou-se num joelho para ficar cara a cara. Apertou os olhos.
        - Que merda você pensa que tá fazendo, Eugene? – disse ele, muito calmo. Quase um sussurro. – que merda você pensa... a gente não tinha um acordo? Eu ficaria em Riverside, Rose’s Garden e Saint Patrick e você com a porra do bairro dos negros inteiro, só pra você, pra você encher o cu dos seus irmãos de pedra e maconha a vontade e o que você faz? Caralho, o que você faz? Manda uma dúzia de imbecis assaltar minhas bocas, rouba meu pó, e mata dois garotos, é isso que você faz – Bullet apenas encarava, respirando forte. Seu orgulho gritava, mas ele não abria a boca. Billy se virou, incrédulo com a situação, metendo a mão no cabelo com uma mão e tirando a pistola da cintura com a outra, colocando-a sobre uma mesa.
        - Cacete, Eugene, quê que eu faço contigo? Quê que eu faço, te mando num saco preto pra tua mãe, é isso? Foi nisso que tu se confiou, não foi? Que eu não ia te matar por causa da tua mãe? Só pode ser, só pode... – arrastou uma cadeira e sentou meio esparramado, de frente para o negro calado. O olhou por um segundo e soltou um suspiro, balançando a cabeça, dando um tapa na própria coxa. – que decepção, cara, que decepção... eu realmente achei que você fosse um cara bom, mas olha o que você me obriga a fazer. E ainda fica aí calado, cheio de razão! Acha mesmo que eu vou deixar de te matar por causa da tua mãe, Eugene? – Falou pegando a arma da mesa. Do lado da porta, parado como um soldado, o que ele era, Baldie sorriu. – Acha mesmo que não posso? Que eu não vou reunir todo mundo e pegar teu bairro todo de volta? Boca por boca? Acabar com todas e deixar todo mendigo de lá sem UMA pedra pra fumar, ninguém vai vender pra ninguém de lá, nos outros bairros, pra ver cada preto, branco, japa, chicano, o caralho de Saint Hellen morrer de abstinência, acha que não? Pois é isso que eu vou fazer! – Bullet foi ficando cada vez mais ofegante, enquanto Billy não saia da sua meditação, jogado na cadeira como se tivesse falando qualquer coisa sem importância. – Eu nem preciso te matar, não. Eles vão fazer isso por mim. Eu só vou dar o motivo. Ah, - e foi se levantando – e dar uma ajuda pra eles. – encostou o cano da arma num joelho de Bullet, q abriu a boca a primeira vez. Disparou um tiro em cara joelho, à queima roupa e se virou indo para a porta, falando com Baldie. – Você ouviu, né? Vai chamando todo mundo, vamos derrubar Saint Hellen ainda essa noite. – ele foi falando, meio gritando, para a voz ficar acima dos gritos - E liga pro Damien pra ele avisar pra todo mundo que só pode vender pra quem é do bairro, nada de vender pra gente de fora por uns tempos. EI, HARRIS! – gritou, já na rua, para outro “companheiro” seu, como ele chamava-os – pega esse filho da puta chorão aí dentro e leva pra casa da mãe.
        Entrou no seu carro, sozinho. Olhou-se no retrovisor um pouco, enquanto pegava uma aspirina no porta-luvas e tomava a seco. Seus olhos estavam vermelhos, inchados. Pegou uma caixinha prateada no bolso da jaqueta, abriu, cheirou o resto de cocaína e guardou-a de volta. Fazia 2 noites que dormia muito mal, e lá se ia mais uma noite fora da cama. Negro filho da puta, pensou. Vida filha da puta.


segunda-feira, 14 de março de 2011

Tédio

        E o banco estava lá, sozinho. Naquela hora da madrugada era sempre assim: nem o vento parava pra lhe fazer companhia. No máximo uma chuvinha leve e rápida aparecia para movimentar um pouco as coisas, e até já tinha dado as caras, mas já fora embora. Agora era só ele. Ele, as folhas secas do chão e suas tatuagens, entalhadas por chaves. Aquela do coração com “S e E” dentro era a preferida. Dava a impressão que fora um banco importante para aquelas pessoas, um dia. Nem todo banco de praça tem essa sorte.
        Mas de repente uma garrafa de vodka parou por ali. Perto da beirada do assento, quase caindo. Já estava perto do fim, coitada, com o rótulo meio rasgado. E um cigarro foi aceso, dentro de uma concha feita pelas mãos de um rapaz que parecia mais sozinho que o banco, mesmo acompanhado pela garrafa. Ele não sentou, ficou ali chutando folhas secas, fumando o cigarro que era o mais desperto da praça, soltando aquela fumaça que bem que tentava, mas o máximo que conseguia era lembrar uma neblina. Diferente do resto, o rapaz não estava ali por estar, ele tinha algo a fazer. Pegou a garrafa pelo pescoço, tomou um gole e fez uma careta. Outro trago longo do cigarro, como tira-gosto, e já estava na hora. Ele não estava pronto, mas estava na hora. Enfiou a mão no bolso da calça e tirou uma faca. Ela reluziu, cruel, sob a luz do poste que observava a cena que estava bem tediosa até agora.
        O garoto retirou o relógio de pulso e o guardou no bolso de onde tirara a faca, estirou o braço a sua frente e travou. Uma gota salgada pulou da ponta do seu nariz nessa hora, num longo mergulho até o chão, no qual infelizmente ninguém prestou atenção. A faca abaixou um pouco, junto com o pulso, e mais gotas pularam seguindo a primeira. O silêncio foi violentamente quebrado por um soluço úmido que escapou apertado pela boca do garoto, e o ventou passou para dar uma espiada no que estava acontecendo. A boca então, junto com os olhos e resto do rosto se voltou para cima, para respirar um pouco, e o soluço parou.
        O tempo estava passando, e a faca resolveu se apressar. Se ergueu enquanto o garoto ainda olhava pro céu, faminta e concentrada. Esperou os olhos se fecharem com força e como num afago, abriu o pulso de cima abaixo. Com pressa, para não perder o ritmo, pulou para a outra mão e avançou no outro pulso e por fim relaxou. Trocou de lugar com a garrafa, no banco, e o cigarro já quase morto passou sua chama para um novo, num beijo. Os olhos, que já tinham se aberto, nesse momento se fecharam calmamente, aliviados, e depois de um outro gole e outra careta, o garoto enfim sentou-se.
        O banco, sortudo, era mais uma vez um banco especial, com suas novas tatuagens em vermelho escuro brilhando sob o olhar atento do poste e dos insetos que o rodeavam, apesar de parecer que não prestavam atenção em nada. Passado algum tempo, o cigarro se foi, e o vento passou para ver o que estava acontecendo de novo. O sangue escorria e caia, brincando de esconder-se entre os paralelepípedos do chão da praça. E a garrafa ficou lá, quase no fim, parada, fazendo companhia ao banco sem nunca secar.


segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Por acaso

         Marilyn chorava. Coitada. E ainda a chamavam de vagabunda. Como se ela tivesse escolha. Como se ela gostasse daquilo. E seu rosto ardia, vermelho. Suas coxas, sua bunda, suas costas estavam todas riscadas de unha. O orgulho, a dignidade, isso já tinha sido arrancado do seu corpo, e agora o que lhe doía era a inocência. E veja só, nessa altura do campeonato, Marilyn dizia para si, vem você querer sonhar com inocência? Coitada.
         Aprendera um jeito de chorar sem borrar a maquiagem, para não ter que voltar para casa, ou entrar em algum banheiro de bar e ter a bunda beliscada enquanto atravessava as mesas. Afinal, naqueles trajes, só a deixavam entrar nos lugares onde os homens beliscavam as mulheres. Onde homens xingavam mulheres com o que chamavam elogios, e ela lhes sorria, humilhada.
         As pessoas da cidade são todas diferentes, mas a grande maioria compartilha uma característica em comum: odeiam as pessoas da cidade. Por serem taradas, por serem puritanas, por serem burras, egocêntricas, gordas, magricelas, estranhas. Odeiam umas as outras por serem o que são, sejam o que forem, mesmo que sejam iguais. Até que cansam, e são indiferentes umas as outras, enquanto odeiam ou admiram somente a si.
         Marilyn era das que odiava. As pessoas e a si, ao mesmo tempo. As ruas a haviam deixado amarga, amarga demais para olhar nos olhos de Gerald e perceber como ele a olhava. Mas Gerald era do tipo mais raro, aquele que não odeia nem é indiferente a ninguem. Pobre Gerald, era do tipo mais desgraçado.
         Se não fossem as ruas, se fosse alguns anos mais cedo, Marilyn até sorriria depois de ouvir Gerald lhe gaguejar um bom dia, se atrapalhar com suas cartas ou tropeçar, quando ela aparecia. Poucas coisas podem ser mais cruéis do que a hora errada, e quase nada era mais destrutivo do que a amargura de Marilyn. Mas Gerald era um rapaz esforçado. E, o melhor, era um rapaz que bebia.
         Um dia, o acaso, sempre confundido com destino, decidiu fazer com que Richard, o parceiro de bebedeiras de Gerald, o expulsasse do seu apartamento bem na hora em que Marilyn chegava ao segundo andar. Richard, por acaso, era dos que odiava a todos, menos a si, nessa época. O silêncio quebrado bruscamente tem um efeito muito interessante, às vezes, de cortar reflexões, o que geralmente é uma boa coisa. Gerald cambaleou com o empurrão de Richard, se apoiou na parede do outro lado do hall, rindo da língua enrolada do mal perdedor de discussões que seu amigo era, e continuou rindo quando este chegou perto de derrubar o prédio com a porta. Riu um pouco mais, até que percebeu Marilyn no corredor, parada, esperando uma chance de passar pela confusão. Olhou-a, e lhe sorriu, bêbado e sincero, o melhor sorriso que tinha guardado, e ela, por falta de escolha, o olhou nos olhos, assustada.
         - Marilyn, oi! Quer beber um pouco? Ainda tem uma garrafa de vinho, no meu apartamento, o que acha?
         Ela não merecia aquilo. Tinha sido uma noite cansativa, e na sua casa, ainda restava um bêbado querendo arranhá-la – não, obrigada. Estou cansada, vou dormir.
         Baixou os olhos e seguiu andando, para seu apartamento.
         - Ah, tudo bem. É, eu também tô cansado, mas eu queria alguém para conversar, ainda. Tô cansado , mas não to afim de dormir, sabe como é?
         - Hum. – não sabia que idiotas como aquele paravam a gagueira quando estavam bêbados.
         - E você parece alguém legal para conversar, sabe. Às vezes é tudo o que eu quero, alguém para conversar.1
         Passara por ele e alcançara a porta do seu apartamento. Pegava a chave dentro da bolsa pequena.
         - Me desculpe estar sendo tão chato com você, eu só queria conseguir ser sincero, Marilyn. – só agora que ele repetira, ela se dera conta: ele sabia o seu nome, e ela não falava com ninguém daquele prédio. Ela nem sabia o nome dele, pra falar a verdade, só o conhecia de vista. Parou de rodar a chave e o olhou.
         - Você não é uma menininha, eu tenho certeza que você percebe como eu olho pra você, não é? Eu sei, você tá cansada, eu sei. Mas você sabe, não sabe?
         - Não. Não sei. – tinha algo estranho com ela, agora. Ela estava nervosa, e curiosa com o que não sabia, apesar de, a esta altura, já suspeitar, é claro. Mas na mente de pessoas como ela, esse tipo de coisa era muito rapidamente desmentida.
         Gerald olhou o chão, levantou a cabeça, de olhos fechados. Pôs-se ereto, respirou fundo. O sorriso lhe sumiu do rosto, e ele pareceu sóbrio, exceto pelos olhos vermelhos e a face suada, cabelos despenteados. Fitou o chão mais uma vez, como que criando coragem para falar:
         - Eu não quero lhe importunar. Muito menos que você seja... como é a palavra... indiferente assim. – então pôde olhá-la nos olhos. O que iria falar lhe tirava o medo que tinha dela. – Eu sou tão sozinho quanto você. E acho que é isso que nos une. – ela pareceu ter medo dele. Ele olhou o chão mais uma vez, e uma mão esfregou a outra com força. Ela abaixou o olhar, ele levantou o seu, tímido, com o rosto ainda para baixo. Ela olhou a porta do seu apartamento, como se quisesse fugir, ele olhou a do apartamento do outro lado do corredor, sem enxergar nada. Ela girou o trinco e abriu a porta, ele procurou qualquer coisa nos bolsos, enquanto procurava algo para falar. Ela tomou coragem.
         - Eu preciso entrar.
         - Tudo bem.
         -...
         -... Boa noite.
         - Pra você também. – e fechou a porta. Se pudesse pensar direito, tentaria entender por que aquela conversa tão estranha a havia deixado tão... estranha. Trêmula. Inquieta. Entrou no chuveiro, tomou um banho meio distraído, vestiu o pijama, desligou a luz e caiu na cama, de olhos bem abertos. Tentou julgar um pouco mais na frase do vizinho bêbado, coçou algum inseto, o expulsou da cama, virou-se de lado, lembrou do velho magro, com unhas sujas, muito sujas, de mais cedo, pensou que estava sozinha agora. Lembrou do dinheiro que Margareth lhe devia, que iria completar o aluguel, se ela decidisse lhe pagar, se encolheu para o vento frio da janela e pensou em ter alguém em quem se abraçar. Lembrou das unhas fedorentas do velho magro. Percebeu que o velho de unhas sujas não durou quase nada na sua cabeça,Parou um pouco, e de repente, Marilyn sorria.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Sobre homens e coleiras

Cães de raça são cães treinados, cães medrosos. Eles têm um mestre, e atendem ao seu chamado.

Bem alimentados, eles têm uma vida segura. Não precisam de mais nada, só daquelas paredes, e de uma volta ou outra pela vizinhança, sempre amarrados au seu amado mestre, que os alimenta, limpa e os castiga, para que não saiam da linha, que não pisem fora do cercado onde nasceram. Eles vivem naquela forca. Eles amam aquela forca.

Cães vira-lata são feios. São magros. Peludos demais. Alguns carregam cicatrizes que mostra o quão dura é sua vida. Eles não tem comida todo dia. Eles mudam de casa todo dia. Eles andam em bandos, ou não, pois vira-latas são únicos. São sozinhos e unidos. São feios e simpaticos. Suas cicatrizes são um convite a curiosidade, e sua condição, um convite à amizade. E amizade fiel, não por medo de solidão, pois esta tem sido sua fiel companheira a anos. Amizade por amizade. Fidelidade por fidelidade. Liberdade por liberdade.

Diferente dos de raça, os vira-lata são livres. Livres até mesmo de uma forma física, pois como já dito, eles são unicos. A liberdade tem seu preço, e eles pagam, duramente, mas pagam. Pois ela é sua droga, seu vício. E dane-se se os cães de raça os acham feios ou peludos demais. Eles vão apenas olhar, com aqueles olhos vivos e dizer: você não sabe o que está perdendo.


(Texto de mais ou menos agosto ou setembro de 2008)

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Copo d'água

Harold Davis fitava a pedra de gelo que restava no seu copo de whisky, lembrando daquela expressão "A ponta do iceberg". Deveria ter bebido aquilo rápido, estava aproveitando a hora do almoço para passar em casa e tomar uma dose, mas a primeira foi tão rápida que não viu mal algum em tomar uma segunda, com mais calma. Tanta calma que só restava uma pedra de gelo não dissolvida.
Descansou o copo no peitoril da janela do apartamento e olhou a rua. Sua viatura do outro lado, uns moleques jogando bola, a mãe de algum deles gritando que era hora do almoço. Harold adorava aquela janela, e a vista que dava para os prédios de apartamentos antigos, com a tinta gasta, suja. Betty os achava horríveis, reclamava sozinha que os moradores deveriam ter vergonha na cara e mandar pintar aquilo, mas Harold não. Betty as vezes o cansava, com tanta reclamaçao, o sofá da sala que tinha que trocar de capa, os vizinhos que falavam dela enquanto ela falava deles, dos clientes e dos empregados da lanchonete, e até da pintura dos apartamentos a frente do seu. Ele preferia a vista de sua janela preferida assim, ainda mais depois de algumas doses. Sempre ficava procurando formas na sujeira, como se fossem nuvens.
De repente, ouviu gritos a esquerda, e quando se debruçou para ver o que era, derrubou o copo da janela, que viajou sem pressa até se espatifar na calçada. Um assalto estava acontecendo logo ali na esquina, em plena luz do dia, com sua viatura logo adiante. Harold tremeu, quando percebeu que o assaltante vinha descendo a rua na direção do seu apartamento. Sentou-se pesadamente no chão, encostado na parede, tentando não fazer nenhum barulho, e pensando num jeito de se explicar para alguem que reclamasse com ele por isso. Pensou no whisky, xingou o azar, sussurrando. Foi engatinhando até a mesinha de centro da sala, tentando lembrar se alguem havia o visto sentado ali bebendo. Pegou a garrafa e se encostou de volta na parede, deu um trago longo, apoiou a garrafa sobre a barriga grande e dura, que forçava os botões de sua farda de policial militar, enxugou o bigode com a manga da camisa e esperou. Lembrou-se da garrafinha de metal que tinha secado naquela manhã, tirou-a do bolso do cinto, encheu até quase transbordar, com muita paciência. encher a garrafa era uma de suas terapias, o acalmava. Fechou-a e enfiou de volta no bolso.
Já tinha dado tempo. Então, levantou-se, longe da janela, deu outro trago e guardou a garrafa no armario da Tv. Jogou uma pastilha de menta na boca, apertou o cinto que havia aberto, acertou a camisa, o colarinho e saiu porta afora, calmamente. Já estava quase alcançando a rua quando sua vizinha de baixo, Dona Susan, lhe alcansou, aflita:
- Senhor Harold! Acabaram de assaltar o filho da Selma!
- O quê, agora? onde!?
- Aqui na esquina! Um homem negro, magro, tenho certeza que vindo daquela favela que é a área da fabrica de papel, ali só tem gente que não presta.
- E ele foi pra onde? Meu deus, e eu só vim aqui pegar uns documentos que esqueci.
- Foi pros lados do armazém, pelos becos entre os predios.
- Certo, eu vou atrás dele, acho que até já sei quem é! - e saiu correndo pra rua, desengonçado. Entrou correndo na viatura, as pessoas na rua apontando pra que lado deveria ir, pedindo aos gritos para que pegasse o marginal, que ele realmente sabia quem era, Ottis Green, conhecido como abutre. Um assaltantezinho qualquer, já havia apanhado muito, tanto de Harold como até do próprio Escorpião, o louco mascarado que perseguia esse tipo de gente noite adentro.
Harold lugou o carro com pressa, arrancou com força e ligou a sirene. Dobrou a esquerda, como indicaram. Ottis devia estar entre os becos do proximo quarteirão em frente, agora. Então virou a direita e diminuiu a velocidade. Seu parceiro, Louis, já devia estar puto com a demora, esperando na lanchonete de Betty.
Abriu o bolso do cinto, tirou a garrafinha, abriu e deu um trago curto. Tinha que economizar, só tinha aquilo até o fim da tarde. Ligou na rádio country e desligou a sirene.


Entre o prisma e a esfera de vidro

Nunca consigo falar bem de mim mesmo, e as vezes me cobro a sinceridade, humildade e inteligência que vejo em fazê-lo com uma dose grande de verdade. Eu me considero uma pessoa de sorte, por achar que sortudo é aquele que tem algo que não fez por onde conseguir. De certa forma, aquele que tem o que não merece.
Tem gente que sim, mas eu não gosto de mim. Nem um pouco, nem por um lado muito específico, e não intendo aqueles que conseguem. Muitas vezes, é desesperador pensar algo sobre si, ouvir e ser convencido pelas pessoas que você está errado e, logo depois, olhar melhor e se achar certo novamente. Existe um desejo muito grande de ir pela cabeça dos outros, quando é só você que se cobra. Eu me sinto um ladrão de amizades nessas horas.
Sabe, ao falar de si mesmo é dificil não ser sentimental, melodramático por uma questão simples de perspectiva. Para outras pessoas, é impossivel ser humilde. Essas decidiram usar os olhos alheios com espelho. Não os julgo, é um jeito muito bom de se ver.
É compreensivel se sentir profundamente injustiçado quando um pequeno erro faz com que pareçam totalmente errados, quando um só vacilo os tira todo o valor, mas quando falam de si mesmos, fazem exatamente isso ao contrario: usam pequenas vitórias para se definirem como vencedores. Aqui, eu tento não fazer nenhum, nem outro. Muito menos colocar defeitos e qualidades numa balança. Para mim, o que vale aqui é minha essência. O quanto eu sei que não sou corajoso, sem tentar contar quantas vezes eu corri de medo. Consegue ver a diferença? Como quando o jogador que joga melhor e o jogador que vence não são os mesmos. E me perdoem a prepotência, mas eu conheço muito bem meus defeitos. Taí uma qualidade minha. E eu me esforço para ser humilde de fato. Não sou o melhor nisso, mas me esforço. Já são duas qualidades.
Eu acredito muito que uma ótima forma de viver é calado, quieto, de olhos bem abertos e de costas para os espelhos, mas não tive a sorte de ser assim, e faço tudo ao contrario. A gente tem algumas sortes na vida que acabam se mostrando um grande azar, e o contrario também. Eu tive muito dos dois.
O grande problema de se achar um sortudo e não saber conviver com isso é a maldita vontade de fazer justiça, e querer escapar da sorte grande. Por exemplo, tenho vontade, as vezes, de me autodestruir. Me tornar tão podre para os outros quanto me sinto por dentro, para que me vejam como eu me vejo, e então poder ficar em paz, sentindo todo o ódio e asco das pessoas que me amaram um dia. Deixar de fingir tanto, de ser um sortudo e ser alguem visto como deve ser visto. Justiça.
Podem me chamar de ingrato a vontade, não me importo. Se não sentem o que sinto, não sabem a culpa que se sente por se ser profunda e completamente normal, quando lhe olham como se fosse alguem que valesse a pena. A gente quer sempre ser melhor ou maior para os outros, eles esperam que você cresça, evolua, e veja só, eu não sou nem o que pensam, como vou melhorar além disso?
O mundo é dos espertos, não meu. Eu odeio pessoas que enganam outras, e odeio a mim. Me perdoe o drama. Só tentei ser sincero.