sábado, 5 de fevereiro de 2011

Copo d'água

Harold Davis fitava a pedra de gelo que restava no seu copo de whisky, lembrando daquela expressão "A ponta do iceberg". Deveria ter bebido aquilo rápido, estava aproveitando a hora do almoço para passar em casa e tomar uma dose, mas a primeira foi tão rápida que não viu mal algum em tomar uma segunda, com mais calma. Tanta calma que só restava uma pedra de gelo não dissolvida.
Descansou o copo no peitoril da janela do apartamento e olhou a rua. Sua viatura do outro lado, uns moleques jogando bola, a mãe de algum deles gritando que era hora do almoço. Harold adorava aquela janela, e a vista que dava para os prédios de apartamentos antigos, com a tinta gasta, suja. Betty os achava horríveis, reclamava sozinha que os moradores deveriam ter vergonha na cara e mandar pintar aquilo, mas Harold não. Betty as vezes o cansava, com tanta reclamaçao, o sofá da sala que tinha que trocar de capa, os vizinhos que falavam dela enquanto ela falava deles, dos clientes e dos empregados da lanchonete, e até da pintura dos apartamentos a frente do seu. Ele preferia a vista de sua janela preferida assim, ainda mais depois de algumas doses. Sempre ficava procurando formas na sujeira, como se fossem nuvens.
De repente, ouviu gritos a esquerda, e quando se debruçou para ver o que era, derrubou o copo da janela, que viajou sem pressa até se espatifar na calçada. Um assalto estava acontecendo logo ali na esquina, em plena luz do dia, com sua viatura logo adiante. Harold tremeu, quando percebeu que o assaltante vinha descendo a rua na direção do seu apartamento. Sentou-se pesadamente no chão, encostado na parede, tentando não fazer nenhum barulho, e pensando num jeito de se explicar para alguem que reclamasse com ele por isso. Pensou no whisky, xingou o azar, sussurrando. Foi engatinhando até a mesinha de centro da sala, tentando lembrar se alguem havia o visto sentado ali bebendo. Pegou a garrafa e se encostou de volta na parede, deu um trago longo, apoiou a garrafa sobre a barriga grande e dura, que forçava os botões de sua farda de policial militar, enxugou o bigode com a manga da camisa e esperou. Lembrou-se da garrafinha de metal que tinha secado naquela manhã, tirou-a do bolso do cinto, encheu até quase transbordar, com muita paciência. encher a garrafa era uma de suas terapias, o acalmava. Fechou-a e enfiou de volta no bolso.
Já tinha dado tempo. Então, levantou-se, longe da janela, deu outro trago e guardou a garrafa no armario da Tv. Jogou uma pastilha de menta na boca, apertou o cinto que havia aberto, acertou a camisa, o colarinho e saiu porta afora, calmamente. Já estava quase alcançando a rua quando sua vizinha de baixo, Dona Susan, lhe alcansou, aflita:
- Senhor Harold! Acabaram de assaltar o filho da Selma!
- O quê, agora? onde!?
- Aqui na esquina! Um homem negro, magro, tenho certeza que vindo daquela favela que é a área da fabrica de papel, ali só tem gente que não presta.
- E ele foi pra onde? Meu deus, e eu só vim aqui pegar uns documentos que esqueci.
- Foi pros lados do armazém, pelos becos entre os predios.
- Certo, eu vou atrás dele, acho que até já sei quem é! - e saiu correndo pra rua, desengonçado. Entrou correndo na viatura, as pessoas na rua apontando pra que lado deveria ir, pedindo aos gritos para que pegasse o marginal, que ele realmente sabia quem era, Ottis Green, conhecido como abutre. Um assaltantezinho qualquer, já havia apanhado muito, tanto de Harold como até do próprio Escorpião, o louco mascarado que perseguia esse tipo de gente noite adentro.
Harold lugou o carro com pressa, arrancou com força e ligou a sirene. Dobrou a esquerda, como indicaram. Ottis devia estar entre os becos do proximo quarteirão em frente, agora. Então virou a direita e diminuiu a velocidade. Seu parceiro, Louis, já devia estar puto com a demora, esperando na lanchonete de Betty.
Abriu o bolso do cinto, tirou a garrafinha, abriu e deu um trago curto. Tinha que economizar, só tinha aquilo até o fim da tarde. Ligou na rádio country e desligou a sirene.


Um comentário:

Flávia Costa disse...

Caramba... é assim mesmo... e quem sou eu pra julgar? hauahuahuahuha.